domingo, 27 de julho de 2014

O poeta e jornalista Florisvaldo Mattos nasceu em Ilhéus, cursou o ginásio em Itabuna e formou-se em Direito pela Universidade da Bahia em 1958, mesmo ano em que integrava a primeira equipe do Jornal da Bahia. Glauber Rocha era o editor de polícia e foi quem mais apostou no talento do jovem grapiúna, levando-o a trocar a advocacia pelo jornalismo e pela poesia. Sob a liderança de Glauber, Florisvaldo participou do grupo literário que editava a revista Mapa. No dia 11 de setembro de 2001, Florisvaldo viveu o atentado às Torres Gêmeas de Nova York como jornalista e como poeta. Nove dias depois ele gerou o poema Sísifo, o fogo e as essências, publicado então no suplemento semanal que ele editava magistralmente no jornal A Tarde, de Salvador, o A Tarde Cultural. Este blog republica o poema dez anos depois para marcar a data com um jeito baiano de ver o fato histórico.
Sistema agrário
 
Meu canto gravado de um saber oculto de águas
esquecidas fabricarei no campo com suor
de rudes trabalhadores, na chuva sepultando-se
de búzios pontuais, lamentos e desgraças.
Forçosamente rústico caindo sobre troncos,
pelo ar, compacto de húmus e branco vinho caindo
sobre plantações. Sobre homens caindo. Não os sei
com metralhadoras e mortes pesadas flutuando
em suas mãos calosas de sonho e agricultura.
Senão com amargo clamor ao meio-dia, quando
com rijas ferraduras rubro sol golpeia-lhes
decisivo o tórax sombrio. De sangue a sua
permanência rural de árvore e vento.
 
Materiais e diários, continuamente os vejo
por frios vales e serras recolhendo incertezas
e dores unânimes, pontes que lhes pesam úmidas,
como rios perduráveis, sobre o rosto seguro (banhados
tão por cinzentos rios, girassóis destroçados
vigiando rebanhos e metais decadentes
revisando no tempo em sonora aliança), como
estranhas biografias e equipagens
de passados cavaleiros, em derrota.
 
Impossuídas colheitas vão durando,
como denso muro de sono cicatrizado
em seu corpo amanhecido sobre a terra, que
pensamentos cruéis e sombras apunhalam.
Meu canto fabricarei com lágrimas e suor
subterrâneo de músculos e ferramentas
 
Maduram no verde dos cacauais suas asas telúricas.
Nas semeaduras, sob tempestade, reside no solo
seu mecanismo de luta e existência
de incessante labor camponês. Agrário sempre.
Suas armas essenciais, sua geometria agreste
hão de impregnar-se necessárias de úmidas
paisagens agrícolas de horror precipitando-se
sobre homens em silêncio nas estradas pacíficas.
Eles que sonhavam com instrumentos longínquos
terão na cabeça, rugindo sempre uma voz de ameaça,
quando a seus pés um ruído grosso de sacrifícios
vai sua boca de amor sem pão revolucionando.
 
 
 
 
MATTOS, Florisvaldo.  Mares Anoitecidos (Transações e desdita do Sig. Flamminco, em baía de sal e sol, com forma de útero — e outros inéditos).   Salvador, BA: Fundação Cultural do Estado da Bahia/ Imago, 120 p.  (Bahia: Prosa e Verso - 500 anos de Brasil) 14x20,5 cm.  ISBN 85-312-0713-4  “ Florisvaldo Mattos “  Ex. bibl. Antonio Miranda 
JANELA PARA O DIA
Algo sonoro me acena
e todo meu corpo se eriça
quando ao fundo do horizonte
severo me olhas severo
como um deus ofendido.
Algo mais do que minhas heranças
familiares levanta-se
do verde gramado de sonhos
onde pastam meus ontens.
Mais me alveja o silêncio
em livre descobrimento.
Sou todo uma selva de hábitos
e nada sei que outros lábios
já não tenham dito ou tentado.

No aglomerado dos dias
me detenho objeto de assalto.
Ponho as mãos sobre meu rosto
cego para a verdade que está
no chão debaixo de meus olhos.
Não aos céus. Não às águas.
Não à terra impossuída. Ao
sangue só ao homem
debito o que tarda.
E me guardo inconverso
ao poder do desconhecido:
não há magia em saber-se
passado e futuro nem.
 
MATTOS, FlorisvaldoSonetos elementares: uma antologia.  Ilustrações de Fernando Oberlaender.  Salvador: EPP Publicações e Publicidade, 2012.  94 p. ilus.  Orelha escrita por Myriam Fraga. Inclui foto do autor, por Márzia Lima.  ISBN 978-85-98866-33-9  Carmurê Publicações – apoio Banco Capital.  Tiragem 1000 exs.    Col. A.M. 

Tropas de cacau
 
          Para James Amado
 
Conduzindo cacau para Agua Preta,
Sinto na tropa um fio de soluço;
E algo de mim que viaja em fuga, é seta,
Que aponta um tempo em que eu, pagem de buço,
Mirava o efeito que um sol exegeta
Produzia na flora, de onde um ruço
E um castanho rompiam (quanta meta,
Quanta preparação para o soluço...).
Aqueles burros hoje, aquelas cargas,
Recalcando ladeiras na memória,
Como em todas as estações amargas,
Fazem trajeto inverso de outra glória:
São estrelas em tardes andarilhas,
Remédio que à alma exausta chega em bilhas.
 
 
DeFlorisvaldo Mattos
Fábula civil
Capa e ilustrações de Calasans Neto.  
Salvador: Edições Macunaima, 1975.  
57 p.  32 x 24 cm